Quem escreveu os Manuscritos do Mar Morto?
Historiadora israelense derruba a tese de que manuscritos do Antigo Testamento foram produzidos por essênios que, para ela, nem existiram
Em 1947, quando um pastor beduíno jogou uma pedra numa das muitas cavernas do território de Qumran, próximo ao Mar Morto, na tentativa de localizar suas cabras, não tinha a menor idéia de que estava para realizar aquele que é considerado o mais importante achado arqueológico do século e provocar polêmicas que parecem não ter fim. Para sua surpresa, a pedrada não assustou os animais, mas provocou um barulho que parecia ser de algo se quebrando. Ao investigar o que havia acontecido, o rapaz se deparou com uma infinidade de potes de cerâmica muito antigos e, dentro deles, vários rolos de pergaminhos, papiros e até placas de cobre. Ao todo, cerca de 930 textos foram encontrados e batizados com o sugestivo nome de Manuscritos do Mar Morto. Datados de 250 a.C. ao ano 65, esses documentos relatam práticas, crenças e hábitos que ajudam a entender como era o judaísmo na época em que Jesus viveu e ainda trazem a versão mais antiga dos livros do Antigo Testamento, quase mil anos mais velha do que qualquer outro manuscrito que ainda exista. A maioria dos estudiosos acredita que foram produzidos por um grupo de judeus ascéticos, os essênios. Agora, no entanto, surge uma nova e radical explicação para a origem dos documentos que promete ressuscitar o clima dos acalorados debates acadêmicos das últimas décadas, quando, pela demora na divulgação do conteúdo dos textos, muita gente começou a dizer que contestariam a autenticidade da Bíblia e mesmo do cristianismo. Segundo a israelense Rachel Elior, professora de misticismo judaico na Universidade Hebraica de Jerusalém e respeitada historiadora, os essênios jamais existiram.
Depois de estudar durante uma década os manuscritos, Elior concluiu que os textos pertenciam a um grupo de sacerdotes saduceus, filhos de Zadoque, que foram banidos de Jerusalém no século II a.C. e teriam levado parte da biblioteca do templo para um esconderijo seguro no deserto. Quanto aos essênios não passariam de lenda. “Quando Flávio Josefo e outros autores falam dos essênios não fazem uma descrição histórica, mas exercitam a literatura com base em utopias que muitos buscavam de forma independente na época. Não faz sentido haver milhares de pessoas dissidentes vivendo à margem da lei judaica numa comunidade e não existir qualquer referência a elas em textos hebraicos, aramaicos e até nos manuscritos dos quais são supostamente autoras”, afirma a historiadora, que se prepara para lançar sua teoria de forma detalhada no livro Memory and Oblivion (Memória e Esquecimento, em tradução livre).
Historiador judeu que viveu em Roma no século I, Flávio Josefo apresenta os essênios como uma comunidade alternativa de 4 mil pessoas que viviam, em sua maioria, fora das grandes cidades e no deserto. Lá, seguiam à risca os rituais de purificação, imergiam na água pelas manhãs e sempre antes de cada refeição, vestiam-se sempre de branco, defendiam doutrinas como a predestinação, eram vegetarianos, rejeitavam fazer juramentos e proibiam a expressão da raiva. A grande maioria deles optava pelo celibato e não se casava. Também eram contrários à escravidão e combatiam a propriedade privada. O rigor moral e algumas de suas crenças os transformavam em uma sociedade dissidente e esotérica, apontada por alguns como precursora do cristianismo.
Os essênios praticamente desapareceram no ano 70, quando o general romano Tito desmantelou uma revolta judaica e arrasou Jerusalém, destruindo também grupos separatistas. O problema é que realmente há poucas referências a toda essa história. Além de Josefo, apenas o filósofo judeu Filon de Alexandria, o romano Plínio e um orador e filósofo obscuro do fim do século I, Dio Cocceianus, também chamado de Crisóstomo, fazem menção aos essênios.
Essênios ou Saduceus? – Por causa disso, a dúvida sobre quem foram os autores dos Manuscritos do Mar Morto não é propriamente uma novidade. Nos últimos tempos, alguns estudiosos já vinham questionando se seriam eles os escritores. Mas ninguém até agora havia questionado sua existência, teoria que, caso se confirme, pode afetar a forma como se olha atualmente para o judaísmo do século I. “É muito precipitado tirar esse tipo de conclusão. Elior defende que os saduceus teriam produzido os textos de Qumran, mas os escritos vão contra suas principais crenças. Os manuscritos defendem a existência dos anjos, a ressurreição e a vida eterna, coisas abominadas pelos saduceus. Também não temos notícias de dissidências desse grupo que pudessem ter produzido tais documentos”, contesta o arqueólogo Rodrigo Pereira da Silva, professor do Centro Universitário Adventista em Engenheiro Coelho (SP).
Além das versões mais antigas de livros bíblicos, foram encontrados em Qumran materiais apócrifos e sectários, contendo visões apocalípticas e a descrição de rituais litúrgicos feitos por sacerdotes. “Continuo pensando que os autores realmente foram essênios. O mesmo tipo de cerâmica encontrado no scriptorium, a sala onde ficavam os copistas no local da antiga comunidade, também estava nas cavernas. Sem falar na proximidade física e cronológica dos sítios. Mas, claro, isso não revela quem escreveu os textos, pois existem lacunas que não permitem identificar quem foram os autores”, explica Silva.
Depois que os argumentos foram expostos ao público, muitos pesquisadores criticaram os argumentos de Rachel Elior. Principalmente por se basearem no silêncio das fontes, chamado no meio acadêmico de minimalismo. Em outras palavras, se o pesquisador não encontra documentos antigos que mencionem o nome de um rei em certo palácio, diz que esse rei nunca existiu. Só que assim acaba se esquecendo que a História Antiga é um grande quebra-cabeça e que novos achados que desmentem esse tipo de afirmação surgem a cada momento. Dessa forma, personagens bíblicos como o rei Davi e o governador romano Poncio Pilatos, que chegaram a também a ser considerados lendas, tiram sua historicidade comprovada. “Por métodos assim, há autores modernos que negam até o Holocausto”, questiona Rodrigo Silva.
Ao que tudo indica, o enigma dos essênios deve ainda perdurar e provocar novas e quentes discussões. Mas nenhuma delas deve afetar o crédito que têm as Escrituras, em especial o Novo Testamento. A existência e as crenças dos grupos que atuavam diretamente na vida cotidiana de Israel naquele tempo e interagiram com Cristo e, posteriormente, com os discípulos, como os saduceus tradicionais e os fariseus, não estão em debate. Há provas e documentos mais que suficientes para atestar suas posições. Já velhas suposições, como a de que João Batista fosse um essênio porque vivia no deserto e praticava o batismo – ordenança que lembra um pouco os princípios de purificação da comunidade de Qumran – e que teriam influenciado o próprio Jesus, estão definitivamente descartadas há tempos por pesquisadores sérios. Ainda vale lembrar que, diferente do alguns sensacionalistas costumam divulgar, nenhum fragmento de Evangelho foi encontrado nas cavernas do Mar Morto.
Marcos Stefano
Jornalista da revista Eclésia
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